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Novo registro de indivíduo híbrido de saíras no RS reacende debate sobre fenômeno que dura mais de 15 anos


Fotografado em 2025, novo indivíduo com traços de saíra-ferrugem e saíra-de-papo-preto se soma a uma série de registros que sugere uma zona persistente de hibridação no Sul do Brasil. Indivíduo híbrido de saíra-ferrugem e saíra-de-papo-preto fotografado em Osório em 2025

Bjoern-Einar Nilsen

No mês passado, no município de Osório (RS), o fotógrafo de natureza Bjoern-Einar Nilsen registrou mais um indivíduo incomum que desafia classificações tradicionais. Com plumagem mista, a ave chamou atenção por reunir traços de saíra-ferrugem (Hemithraupis ruficapilla) e de saíra-de-papo-preto (Hemithraupis guira), duas espécies que compartilham trechos da Mata Atlântica da região.

Embora o registro seja recente, ele se encaixa em um fenômeno observado há pelo menos 15 anos, reforçando a presença recorrente de híbridos dessas espécies em regiões do Sul do Brasil.

O hibridismo é o resultado do cruzamento entre dois indivíduos de espécies taxonomicamente distintas, e pode ocorrer naturalmente na natureza ou ser provocado pela ação humana, como em ambientes modificados ou em cativeiro.

Esse não foi o primeiro registro de um híbrido entre essas espécies feito pelo fotógrafo. Bjoern, norueguês que vive no Brasil desde 2016, mantém comedouros em casa para observar e fotografar aves. Foi assim que, no ano de 2019, em meio a visitantes frequentes, notou uma ave com a plumagem incomum.

“Quando eu vi e fotografei, eu tinha certeza que era um híbrido, mas para confirmar, eu enviei a foto para o ornitólogo Glayson Bencke, que confirmou. Quando você consegue uma nova espécie, você fica muito animado e feliz, então isso me fez pensar que poderia haver mais desses híbridos nessa área”, diz Bjoern.

Saíra-ferrugem (à esquerda) e saíra-de-papo-preto (à direita)

Bjoern-Einar Nilsen

Embora este tenha sido o primeiro registro feito por Bjoern, o banco de dados do WikiAves aponta que o primeiro híbrido entre saíra-ferrugem e saíra-de-papo-preto foi registrado em 2009. Desde então, os avistamentos vêm se acumulando, e segundo o fotógrafo, a frequência com que essas aves aparecem em Osório impressiona.

“Desde o registro em 2019, tenho usado muito tempo tentando encontrar outros híbridos dessa espécie, e notei que aqui nessa área de Osório onde moro agora, temos mais híbridos que puros dessas duas espécies, e com vários padrões diferentes”, informa Bjoern.

Em um artigo publicado em setembro de 2024 na revista Acta Biológica Catarinense, o biólogo Douglas Meyer relatou nove prováveis híbridos entre saíra-ferrugem e saíra-de-papo-preto na região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. As observações, feitas entre 2020 e 2024, indicam que essa área de transição entre a floresta ombrófila densa e a mista pode ser uma zona ativa de hibridação.

O estudo reforça a ideia de que o Sul do Brasil — especialmente os trechos remanescentes de Mata Atlântica — abriga condições ecológicas propícias para o cruzamento entre as duas espécies, tornando a região uma possível zona de hibridação.

“Já se trabalha com a ideia e registros, inclusive eu tenho uma meia dúzia de registros, de híbridos dessa espécie em praticamente toda a área de abrangência dela no Rio Grande do Sul. E toda a área de Mata Atlântica onde a saíra-ferrugem ocorre, estão sendo registrados híbridos dela”, reforça o biólogo Juan Anza.

Primeiro indivíduo híbrido entre as espécies registrado em 2019 pelo fotógrafo

Bjoern-Einar Nilsen

Para o especialista, o padrão observado — com indivíduos apresentando características intermediárias, muitas vezes, mais numerosas do que as formas puras — aponta para um processo mais complexo do que simples encontros ocasionais entre espécies.

Fatores como a rarefação populacional em determinadas áreas e a sobreposição de habitats são apontados como possíveis gatilhos para o fenômeno. “De Santa Catarina para baixo, esse bicho apresenta esses registros de híbridos. E o contexto de hábitos, de rarefação de indivíduos, tudo contribui”, afirma Juan.

Além disso, Juan considera que o comportamento das espécies — por exemplo, o fato de serem simpátricas e utilizarem os mesmos estratos florestais — aumenta a probabilidade de interação e reprodução entre elas.

“O comportamento ou a etologia da espécie é fundamental para a probabilidade de ocorrer hibridismo, porque elas precisam estar compartilhando o hábito, elas precisam ser simpátricas, sintópicas, ocorrerem, além de na mesma região, no mesmo ambiente, elas precisam estar em contato, e o comportamento define isso”, diz o biólogo.

Híbrido entre as espécies fotografado em Maquiné (RS) em 2024

Juan Anza

O cenário, segundo ele, não se restringe apenas ao extremo Sul. Ao pesquisar no WikiAves, o biólogo encontrou registros semelhantes também em Minas Gerais, sugerindo que a hibridação pode ocorrer ao longo de toda a distribuição da saíra-ferrugem. “Aparentemente, essa hibridação não está restrita a porção sul do Brasil, possivelmente isso vai ocorrer em toda a área de abrangência de ocorrência da saíra-ferrugem”.

Ainda assim, reforça que há um contínuo de registros do sul de Santa Catarina até o Rio Grande do Sul, o que mantém o Sul do país como um ponto de atenção.

Híbridos férteis?

Uma das grandes questões levantadas pela comunidade científica é: esses híbridos são férteis? Juan acredita que sim. “Particularmente eu acredito que esses híbridos de saíra-ferrugem sejam, se não todos, em grande parte fértil, porque é um volume muito grande”, diz.

De acordo com ele, a fertilidade ou esterilidade dos híbridos está muito associada à distância genética entre as espécies originais. Se forem espécies do mesmo gênero, a chance de o híbrido ser fértil é maior em relação a um híbrido de gêneros distintos.

Entre a ameaça e a evolução

O surgimento frequente de híbridos entre saíra-ferrugem e saíra-de-papo-preto no Sul do Brasil não deve ser visto, segundo Juan, como um sinal automático de alerta ou de resiliência ecológica das espécies. Para ele, trata-se antes de um reflexo natural de processos evolutivos em andamento.

“Essas espécies estão em processo de adaptação e evolução. As espécies que hoje nós temos como espécies daqui a mil anos, por exemplo, possivelmente não sejam as mesmas, passarão por evoluções”, afirma.

Indivíduo híbrido fotografado no município de Três Forquilhas (RS) em 2020

Juan Anza

Sob o ponto de vista evolutivo, zonas de hibridação como a do Sul do Brasil podem ter dois efeitos: representar uma ameaça à integridade genética de espécies como a saíra-ferrugem, que vem sendo observada com menor frequência; ou servir como verdadeiros laboratórios naturais de especiação.

“Isso está em franca evolução, está ocorrendo agora. A zona de hibridação pode ser uma ameaça em integridade das espécies? Pode. Inclusive, isso é um processo natural. Pode ser um processo natural. E a zona de hibridação pode funcionar como um laboratório natural de especiação? Com certeza”, finaliza o biólogo.

O que isso vai significar para o futuro da linhagem? Ainda não há resposta. Mas o que se vê hoje, em quintais e fragmentos de mata da Mata Atlântica sulista, é um retrato vivo da biodiversidade em movimento.

*Texto sob supervisão de Lizzy Arruda

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