G1

Álbum que deu voz a João Bosco faz 50 anos como crônica afiada da violência social e política do Brasil dos anos 1970


Capa do álbum ‘Caça à raposa’ (1975), de João Bosco

Ilustração de Glauco Rodrigues

♫ MEMÓRIA

♫ Mineiro de Ponte Nova (MG), onde nasceu 13 de julho de 1946, filho de libanês com mineira, João Bosco teve pré-história musical no estado natal com direito à breve parceria com o então já consagrado Vinicius de Moraes (1913 – 1980), firmada em 1967 em Ouro Preto (MG), cidade histórica onde Bosco procurou o poeta com dois sambas, Rosa dos ventos e Samba do pouso, as primeiras músicas que Bosco fez na vida e que ganharam versos de Vinicius.

Contudo, foi com outro parceiro, o bardo carioca Aldir Blanc (2 de setembro de 1946 – 4 de maio de 2020), letrista de sintaxe singular na MPB, que João Bosco de Freitas Mucci fez nome e história na MPB a partir dos anos 1970, no Rio de Janeiro (RJ), cidade onde se lançou como cantor e compositor, apresentado no Disco de bolso do jornal O Pasquim em 1972, ano em que o mineiro decidiu fixar residência no Rio.

O reconhecimento como compositor, celebrado pela obra em parceria com Aldir, foi imediato. Avalista da dupla já na primeira hora, Elis Regina (1945 – 1982) pôs a artilharia vocal a serviço do samba Bala com bala em gravação feita para o álbum Elis (1972).

Bala com bala ganhou a voz de João Bosco em 1973, ano em que o cantor – contratado pela gravadora RCA – gravou e lançou o primeiro álbum. Produzido por Rildo Hora, esse disco de 1973 nunca ecoou entre o público, talvez pela arquitetura intrincada. Bosco precisou esperar dois anos para se tornar um cantor popular e ter voz ativa como intérprete da própria obra.

Lançado em 1975, o álbum que deu voz a João Bosco, Caça à raposa, completa 50 anos em 2025 como crônica afiada da violência social e política no Brasil urbano dos anos 1970. Rildo Hora aparece creditado na ficha técnica pela coordenação artística e direção de estúdio – no caso, o estúdio da RCA Victor no Rio de Janeiro (RJ), onde o disco foi gravado e mixado em 16 canais, um luxo na época.

Diretor musical de Elis, César Camargo Mariano tocou teclados e fez os arranjos e regências do álbum Caça à raposa, cuja capa expôs ilustração de Glauco Rodrigues.

Os arranjos de Mariano fizeram a diferença, inclusive porque foram executados por banda de sonhos. Dino Sete Cordas (1918 – 2006) tocou violão. O baixo foi o de Luizão Maia (1949 – 2005). Pascoal Meirelles assumiu a bateria enquanto o cavaquinho ficou com Daudeth Azevedo (1932 – 2009), músico creditado na ficha técnica com o apelido Neco. Chico Batera, Everaldo Ferreira, Gilberto D’Ávila (já falecido, mas à época reverenciado entre os músicos pela levada particular do pandeiro) e um músico creditado como Doutor tocaram as percussões. Já as guitarras foram divididas entre Hélio Delmiro (1947 – 2025) e Toninho Horta.

Em que pese o time luxuoso de músicos, o instrumento principal do álbum Caça à raposa – e a rigor de todos os discos de João Bosco – foi mesmo o violão em que Bosco faz baixarias enquanto embute referências do mundo, partindo da África e passando pelo barroco mineiro, pelo universo árabe, pela música ibérica, pela nação nordestina e pelo molejo carioca com personalíssima destreza rítmica.

No álbum Caça à raposa, todo esse arsenal instrumental valorizou repertório de excelente nível, composto por dez músicas assinadas por João Bosco com Aldir Blanc, algumas (as mais conhecidas) já apresentadas nas vozes de cantoras entre 1973 e 1974. Iniciada em Ponte Nova (MG) em 1969 e desenvolvida no Rio de Janeiro (RJ) a partir de 1970, a parceria de João e Aldir estava no auge.

Lançado na voz de Elis em 1974, o samba-enredo O mestre-sala dos mares desfila majestoso na abertura do álbum. De tom político, o samba exalta João Cândido (1880 – 1969), militar gaúcho que, em novembro de 1910, comandou luta para abolir a chibata e a escravidão na Marinha do Brasil, entrando para a História como o Almirante Negro, símbolo de resistência contra o racismo.

Na sequência do disco, Bosco posiciona De frente por crime (1974), samba em que faz a crônica da violência urbana carioca com versos imagéticos apresentados ao Brasil na voz de Simone no mesmo álbum, Quatro paredes (1974), em que a cantora lançou Bodas de prata (1974), canção densa sobre os descompassos e as traças que roem os relacionamentos conjugais.

Após De frente pro crime, vem o bolero Dois pra lá, dois pra cá (1974), lançado por Elis no ano anterior. O arranjo preciso de César Camargo Mariano ambienta o bolero em apropriada atmosfera noturna, íntima e sensual.

Primeira música inédita na disposição do repertório no disco, Jardins de infância (1975) – composição que seria gravada por Elis no ano seguinte no álbum Falso brilhante (1976) – parte de universo lúdico das brincadeiras de crianças para dar o recado da dureza da vida adulta que nunca foi conto de fadas, sobretudo na época da ditadura. “Olha o bobo na berlinda / Olha o pau no gato, polícia e ladrão / Tem carniça e palmatória bem no teu portão”, alertava Bosco atrás dos versos de Aldir.

Outra inédita da safra do álbum Caça à raposa, Jandira da Gandaia (1975) é música nunca regravada, nem mesmo por Bosco. Na letra, Aldir versa em tons quase sombrios sobre a personagem-título Jandira da Gandaia em mais uma crônica urbana sobre amor, crime, morte e violência, temas recorrentes nos versos do samba Escada da Penha (1975), ao qual Bosco voltaria em discos ao vivo de 1983, 1992 e 2006.

“Meu samba é casa de marimbondo / Tem sempre enxame para quem mexer”, avisou Bosco nos versos de Casa de marimbondo (1975), samba que cai em suingue frenético, evidenciando o apuro instrumental do álbum Caça à raposa.

Música menos sedutora no conjunto da obra, o que talvez explique o fato de ter ficado esquecida no disco, Nessa data (1975) reitera que o couro comia no mundo e a quentura da chapa se refletia na alta temperatura das letras de Aldir Blanc.

Música lançada por Elis no ano anterior e reavivada por João Bosco no show da corrente turnê Boca cheia de frutas (2025), a faixa-título Caça à raposa (1974) acende o fogo dos eternos recomeços da odisseia humana.

Samba de breque que ganhara o Brasil no canto vivaz de Maria Alcina, em gravação lançada um ano antes do álbum Caça à raposa, Kid Cavaquinho (1974) resiste ao tempo como uma das músicas mais populares da safra de Bosco e Blanc no biênio 1974-1975.

No arremate do disco, Bosco canta Violeta de Belfort Roxo (1975), perfilando a tristonha personagem-título da música em que Aldir versa sobre a fé popular com fina ironia no verso final. Violeta de Belfort Roxo ficaria (mais ou menos) conhecida na gravação de Elis Regina, lançada em 1979 em compilação de sobras de discos da cantora, editada à revelia de Elis, mas o registro de João Bosco é tão bom quanto o da cantora.

E o fato é que, a partir do álbum Caça à raposa, João Bosco nunca mais deixou de ter voz ativa, passando a gravar com regularidade e a ser reconhecido tanto como compositor quanto como intérprete sagaz da própria obra e também de músicas alheias.

João Bosco canta a música-titulo do álbum de 1975,, 'Caça à raposa', no show da corrente turnê ‘Boca cheia de frutas’

Victor Correa / Divulgação

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